Campos de Treino

Observei cada movimento dele meio escondida, mantendo-me no meu canto para que ele não me visse nem soubesse que eu tivera a infeliz ideia de o espionar a meio de um treino. De facto... Eu admirava-o. Já desde cedo. Mas hoje, essa admiração só se transformara em vontade de enfrentá-lo. Tudo porque ele mexera com uma das coisas de que eu mais me orgulhava em mim mesma: a minha inteligência. Claro que depois ele a havia "elogiado" mas... Ele mexera com ela. Tal como talvez pudesse mexer comigo. Ideia que eu, para dizer a verdade, não entendia como era possível em parte.
Era um facto que ele era um homem profundamente só. Eu conseguia ver aquela solidão toda nos olhos dele. Conseguia ver o quanto a amargura lhe consumia as veias, o sangue, toda a sua postura, apenas através da forma como ele falava connosco, como se apresentava. Sempre frio, impenetrável, severo e mal disposto. Era um facto consumado para mim que essas facetas serviam única e exclusivamente para esconder os seus verdadeiros sentimentos, as coisas que, de verdade, o moviam naquela luta: cansaço... Raiva... Medo... Desespero... Tal como à maioria de nós.
Notei que a maior parte dos que ali estavam o tinham encarado. Por receio de serem castigados talvez, haviam-se limitado a virar costas e abandonar os campos. Até não restar ninguém senão eu, escondida atrás daquele poste, ainda mirando a direcção dele, de novo arduamente como antes. Sem me conseguir conter mais, dei um passo para fora do meu abrigo. Mesmo que fosse punida depois, mesmo que ele gritasse comigo ou quisesse humilhar-me uma vez mais, não iria simplesmente deixá-lo ali, tão só como de início. Era alfo que não combinava, de todo, comigo.

Continuei a exercer os meus passos na direcção dele, sem dizer uma palavra sequer. Foi apenas atrás da sua figura que parei, ainda de joelhos no chão, tão tensa como parecera durante todo aquele tempo que me soara tão interminável. Aos poucos, ajoelhei-me da mesma forma atrás dela, incapaz de conter o impulso de fazê-lo e parar de ser idiota. Tudo o que eu queria... Era, talvez, colmatar a dor dele, findá-la nem que fosse por fazer algo que o fizesse acordar e dar-me um sermão como o daquela tarde. Mesmo que fosse para levá-lo a gritar, exaltar-se, explodir de uma vez... Contando que, com isso, ele voltasse a ser aquele homem que todos viam como um líder apesar de o temerem, eu faria tudo o que pudesse. Porque... Ele conseguia dar-me esperança. Conseguia fazer com que eu sonhasse com o dia em que todo aquele massacre acabaria e poderíamos voltar a ser felizes na nossa medíocre humanidade que se estava a perder, prestes a chegar a um horrível extermínio.
Não disse nada.